Crítica a "Funny Face": 3 vezes Audrey
Se já é encantador vislumbrar no ecrã uma Audrey Hepburn que apenas representa, imaginem uma Audrey que também canta e dança. Sim, é magnífico e apaixonante só de pensar. Mas a boa notícia é que não é preciso conservarem isso como uma utopia, pois em “Funny Face” (1957), de Stanley Donen, a actriz tem este triplo papel. Ao contrário do seu anterior filme, “My Fair Lady”, Hepburn canta realmente, não havendo dobragens, sendo, portanto, na sua carreira este o seu primeiro filme musical. Ao longo da história, é possível vermos a actriz a actuar, dançando e cantando, a solo e em dueto, várias vezes: pela primeira vez, sozinha, interpreta a canção “How Long Has This Been Going On?”; depois com Fred Astaire (Dick) “S Wonderful”; lado a lado com Kay Thompson (Maggie) “On How you Be Lovely”; e muito bem acompanhada por Astaire e Thompson “Bonjour, Paris!”. No entanto, apesar das performances de Astaire e Thompson serem perfeitas a todos os níveis – falo de dança, canto e representação -, embora me custe admitir, por nutrir um grande fascínio por Audrey, esta é tecnicamente inferior a estes dois gigantes por arranhar um pouco os ouvidos dos espectadores. Contudo, apesar de não sermos comtemplados com uma prestação encantadora como a de “Moon River”, em “Breakfast at Tiffanys”, é impossível não ficarmos embebecidos pela imagem e talento da actriz no que diz respeito à arte de actuar. Mesmo com algumas falhas, não há um único momento em que haja vontade de desviar o olhar. Muito pelo contrário, raras são as vezes em que não sorri enquanto a via dançar ou cantar. Mesmo tendo consciência das suas limitações, Audrey Hepburn continua a ser o punctum, ou seja centro das atenções, durante todo o filme. Seja nas performances musicais ou apenas representando, a sua presença não deixa que Astaire ou Thompson, ou qualquer outra personagem, lhe roubem protagonismo por terem uma prestação artística superior. Aliás, em termos de dança, sendo ela uma ex- bailarina, consegue surpreender. É neste aspecto que uma das letras de uma das canções presentes no filme ganha ainda mais significado – “You can’t blame me for being amorous. S’wonderful, s’marvelous” -, porque sem grandes esforços ou snobismos Audrey Hepburn é realmente no filme e ainda hoje, passados tantos anos, um ícone universal e transversal de mulher. Ainda sobre engenho, não podemos esquecer que Astaire é aquele que ficou conhecido por ser um dos grandes ícones, ao lado de Gene Kelly, dos filmes musicais, numa altura em que era moda o género em Hollywood. E por esta razão, na época, Hepburn impos a presença deste para assinar o contrato de participação no filme. Acredito veementemente que sem ele a obra não seria a mesma coisa.
Similar a muitos enredos de comédia romântica, a história apresenta-nos uma revista de moda que está a tentar fazer uma sessão de fotos com uma modelo banal, mas que rapidamente percebe que falta algo ali. Uma nova cara que represente a revista e inspire as mulheres. Então longe das passerelles, ao acaso, quando invadem uma antiga biblioteca para acabar uma sessão, acabam por encontrar a rapariga perfeita – é ela Jo (Audrey Hepburn). Jovem, inteligente e com algum estigma ao mundo da aparência, a rapariga nega-se a tornar-se modelo. Contudo, isso muda, depois de Dick (Astaire), o fotografo refinado e mais velho, a beijar. É assim que Jo vai conhecer Paris, tornando-se modelo e usando como desculpa a vontade de também conhecer um célebre filósofo, cuja doutrina (o empatismo) é a sua grande inspiração. É daqui para a frente que tudo se complica: entre amores e desamores, sessões fotográficas, ideias adversas, juventude e vivencia, o resultado do filme é um par romântico que pouco têm em comum a não ser os sentimentos que sustentam um pelo outro.
Apesar de ter ficado encantada com “Funny Face”, existem também aspectos menos bem conseguidos no filme. Falta a este alguma coesão no que toca à história. Há um pouco a tentativa de pôr de parte a idade da personagem do fotógrafo, que acaba por causar inicialmente alguma estranheza. É como tapar o sol com uma peneira, algo que não resulta e tem um efeito inverso e um pouco ridículo. Penso que a melhor abordagem para contrariar isto seria algo semelhante ao que acontece em “Sabrina”. Em que é clara a idade da personagem desempenhada por Humphrey Bogart, também mais velha do que a de Hepburn, alimentando assim a problemática do filme. Também é um bocado batida a ideia de “rapaz salva rapariga” como se Jo se tratasse de uma rapariga totalmente ingénua e indefesa. Mas estamos no final dos anos 50 e é algo ainda admissível no cinema americano. Mesmo assim, a presença de Audrey Hepburn, em parceria com Astaire, não deixa de ser encantadora e convincente. Há imensa química sem haver grandes toques ou obscenidade. É um romance clássico e enternecedor que vai de encontro à ideia de “empatismo” tantas vezes apresentada ao longo da história. Todavia, não é só Hepburn e Astaire que fazem um excelente papel, Kay Thompson também o faz: é neurótica, sabe se mexer e fascinar à sua maneira e encarna na perfeição a editora da revista de moda, que parece ter sido um apriori de personagens de filmes mais actuais como a que vemos em “The Devil Wears Prada”.
“Funny Face” foi a quarta longa-metragem na carreira de Audrey Hepburn. Antes desta, apenas integrou o elenco de “Roman Hollyday”, de William Wyler (1953), de “Sabrina”, de Billy Wilder (1954) e de “War and Peace”, de Henry King (1956). O filme de Stanley Donen foi considerado uma obra um pouco à frente do seu tempo devido à criatividade do realizador na forma como o compôs – split screen, a tela dividida em duas, e até em três partes, grafismos, desenhos no meio da acção e muito cuidado com as cores e fotografia. É de apontar também que foi usada uma alta resolução chamada de VistaVision Technicolor, criada em 1954 pela própria Paramount Pictures. Relativamente ao filme, é ainda fundamental ressalvar que a dedicação, tanto física como psicológica, empenhada por parte de Hepburn foi colossal, uma vez que esta estava a filmar ao mesmo tempo outro filme realizado por Billy Wilder também gravado em Paris – “Love in Afternoon” (1957).
Todavia, o filme tem tantos predicados que é difícil os mencionar. Mas tentarei ser sintética e referir os mais importantes. Como as belas músicas interpretadas ao longo da história, cujos autores merecem uma salva de palmas de tão refrescantes e apropriadas que são. Estas conferem ao filme aquilo que as da versão original homónima, estreada trinta anos antes, na Broadway, também com Astaire no elenco, não conseguiu. Falo de magia e energia e sobretudo intensidade emotiva, aliada a um excelente grupo de actores.
A obra de 1957 é um musical soberbo e apaixonante, que não consegue deixar ninguém indiferente, tendo um uso altamente admirável da cor. Não esquecendo que toca num ponto frágil, a relação de amor-ódio entre franceses e americanos, tal como vários filmes também o fizeram. Falar de semelhanças de “Funny Face” com outras obras em que Audrey marcou presença é fácil. Basta pensarmos em “Sabrina”, na qual a actriz também interpreta uma personagem pobre que ruma a Paris e muda o seu aspecto de “gata borralheira” para uma autêntica “princesa”. Ou ainda podemos falar do facto de em ambos a actriz contracenar com actores mais velhos e ser dona de uma personalidade invejável, que ao mesmo tempo é ingénua, mas também audaz.
Mas não foi apenas a nível técnico e performativo que o filme foi valorizado. Aclamado pela sua irreverencia e eclectismo, a obra que juntou Hepburn e Astaire no grande ecrã foi bem recebida pela crítica em geral, congratulada em pequenos festivais e nomeada em quatro categorias dos Oscares – argumento original, direcção artística, fotografia e guarda – roupa. No entanto, acabou por não vencer nenhum, tornando-se apenas uma obra de culto cinematográfica, que vive até hoje no coração dos cinéfilos e fãs da actriz.
Podem ver também esta crítica no site Arte-Factos, para o qual colaboro.
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