Crítica: «Birdman» ou «A Inesperada Virtude da Ignorância»

20:27:00 Unknown 2 Comments


«Birdman» ou «A Inesperada Virtude da Ignorância»  é uma comédia negra que confunde a realidade com a fantasia ao mesmo tempo que incentiva a introspeção do público por intermédio essencialmente da personagem principal, desempenhada por Michael Keaton.  À semelhança de outros filmes dirigidos por Alejandro González Iñárritu - falo de «Amor Perro», «21 Grams e «Babel», - este apresenta-nos uma história complexa e que tem a intenção de chegar ao público: não só à sua mente, mas também aos seus desejos mais profundos, ao seu coração. No entanto, em comparação com os anteriores filmes do cineasta, este novo tem uma particularidade bastante diferente. «Birdman» é uma comédia; o que marca uma reviravolta na carreira do seu realizar. Iñárritu utiliza assim uma crítica afiada resultante de um olhar sob a indústria americana do entertenimento – do cinema ao teatro – são analisadas as experiências, angústias e ânsias de um conjunto de pessoas que dão assim lugar a uma história-tipo bem bizarra.

O filme encabeçado por Keaton apresenta um retrato cínico e ao mesmo tempo muito legitimista e objetivo, tanto do mundo do espetáculo como do Homem. Percebemos o distanciamento de quem conta a história para com as personagens, mas ao mesmo tempo, enquanto público, sentimos que estamos no meio da mesma, que a acompanhamos num papel de voyers. Talvez tenha sido essa a intenção do realizador, tornar o público parte integrante do filme, como se não existisse aquela divisão natural entre observadores e participantes, tal como no teatro, o que é curioso uma vez que a narrativa tem em grande parte lugar num. Ao mesmo tempo, a sensação de «Birdman» ter sido gravado num só take, num plano sequência que dura cerca de duas horas, quase sem cortes, de forma a parecer que o tempo que passa no filme não é mais que um dia – como se de uma peça de teatro se tratasse. Mais uma vez, uma escolha irónica, mas inteligente por parte do realizador.

Em «Birdman» a personagem principal é um ex-ator de cinema que vários anos antes atingiu o seu auge popular, quando desempenhou três filmes do super-herói de nome homónimo ao filme. Contudo, tomou a decisão de recusar a terceira sequela e optou por enveredrar por uma carreira que fosse mais intelectual, talvez para provar o seu valor no meio... No entanto, depois dessa recusa a sua carreira e vida pessoal começaram a ruir, pouco a pouco. Algo irónico, não? Uma vez que a escolha para o papel foi um ator que passou por algo muito semelhante, o próprio Michael Keaton que esteve vários anos longe do estrelato e sem desempenhar um grande filme após interpretar a personagem de Batman. Aqui está mais um prova de que «Birdman» é uma obra ousada e provocadora, que joga com o mundo real e a ficçao tornando-os num só: no sonho americano.

Mesmo a escolha do próprio super-herói parece uma alegoria a um conjunto de ideias inerentes às esperanças e medos que todos temos de não conseguirmos ser bem sucedidos, de nos acharmos especiais, diferentes, de um dia podermos ser finalmente livres e voar acima detudo e todos.


A história divide-se em dois níveis distintos: um mais lato relativo ao protagonista e à sua tentativa de levantar a carreira e outro às diferentes personagens e preocupações egoistas de cada uma. Vejamos, Riggan (Michael Keaton) está obcecado com o seu sucesso e auto-realização descurando do mundo que o envolve. Mike (Edward Norton) não consegue lidar com o mundo real, apenas com a vida em palco. Lesley (Naomi Watts) conjuga as preocupações com o relacionamento atual e o difícil caminho até à Broadway.  Jake (Zack Galifianakis) é um agente calculista que apenas pensa no lucro. Sam (Emma Stone) é a filha carente e revoltada que sofre com a ausência-presente do pai (Riggan). 

Todas as personagens secundárias estão fechadas numa busca pessoal, que combina realidade e ilusão, de algo que lhes parece de direito, enquanto são envolvidas indiretamente pelo drama que move o protagonista.  A personagem (da personagem) de Birdman manifesta-se como um alter-ego que assombra a personagem de Keaton, como se de uma consciência se tratasse, questionando as suas decisões e desejos não realizados, ao longo de todo o filme.

A câmara corre, literalmente, atrás dos personagens, de modo a não perder nenhum acontecimento relevante. Pelos corredores da Broadway, cada um dos elementos é espiado pela objetiva, numa verdadeira aula de narrativa dirigida por Iñárritu. Certamente a escolha por uma realização e montagem destemidas fez com que «Birdman» se destacasse da concocrrencia, elevando-se e impedindo-o de ser um filme menor. A versatilidade e diversidade do cast é também um ponto positivo: temos várias idades, várias escolas e competências num só set. Todos os atores têm experiência comprovada e refletem isso para o grande ecrã numa interessante amálgama que demonstra os podres do mundo atual, em que a fama é tida como o objetivo de muitos. Em que o caminho para alcançá-la é encurtado através de todo o tipo de ações mais radicais (veja-se o exemplo do caso do protagonista que dá um tiro na própria cabeça em pleno palco), em que as capacidades e inteligência dão lugar à sorte, influência e vazio moral. Há também a analogia com os filmes de super-heróis, demonstrando que, tal como a humanidade, o cinema encontra-se numa era constante de genocidio cultural, de inocuicidade em que o espetáculo está acima de qualquer valor. A par disto, percebemos como algo ridículo pode ser encarado como arte, caso um agente cultural assim o diga, é o exemplo da crítica que apelida a peça de teatro de Riggan como uma obra de “super- realismo”.

«Birdman» ou «Inesperada Virtude da Ignorância» deixa o fim em aberto...Ou não. Provalvemente a intenção é mesmo essa de cada um dos espetadores conceber a sua interpretação. A meu ver existem pelo menos duas. Uma passa pelo facto de Riggan após receber a boa nova de que a sua peça foi um sucesso achar que não existe mais nada que o prenda ao mundo real e como tal o salto simboliza que finalmente está livre e que a filha o conseguiu ver pela última vez finalmente como ele era: um herói.


Nessa última cena, o realizador mistura mais uma vez a realidade com o imaginário, confundindo o público, mas também o iludindo, pois estamos mais uma vez na cabeça do protagonista vendo aquilo que ele deseja e não o que realmente acontece. A outra interpretação e que provavelmente faz mais sentido é a de que Riggan morre em palco após dar um tiro na cabeça. Por quê? Bem, se repararem ao longo de todo o filme (que se passa em três dias) parece não haver cortes, nem passagens de cena, pelo menos muito bruscas ao ponto do olho humano as detetar.  Todavia, a primeira vez que acontece um corte visível e explícito é exatamente depois de Riggan se ter sucidado em palco. Isso simboliza que a vida de Riggan acabou e que as restantes cenas que se seguem não são reais, são simbólicas, fruto possivelmente da imaginação do personagem que nos mostra o que gostaria que tivesse acontecido em alternativa à sua morte. Se virem com atenção a cena do hospital é a única em que a câmera deixa de ser intrusiva, não segue mais as personagens e tudo está calmo e parece perfeito, demasiado: Riggan recebe a crítica da sua vida, a ex-mulher e filha estão finalmente de bem com ele, este recebe um nariz novo logo na noite em que dá entrada no hospital e tira o curativo no dia seguinte, a filha dá-lhe as flores corretas - as quais ele não consegue cheirar (quando sonhamos ou pensamos não sentimos cheiros) -, ouvimos uma máquina mas não a vemos no quarto e até os paparazi parecem ter voltado a importar-se com ele, além disso a janela de um hospital abre-se... 

Suspeito, não? Sim, porque na verdade tudo isto nunca aconteceu, tratando-se apenas de uma última visão/sonho de Riggan antes de se matar em palco. 

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