Crítica: «Irrational Man» e mais Woody Allen
Um homem chega a uma nova cidade,
sem amor, motivação e sem objetivos. Tudo parece vazio. Porquê acordar? Porquê
viver? Mais um gole daquele whisky, não muito especial, pois todos já sabem ao
mesmo... A angústia tomou há muito conta do corpo. O corpo já não funciona; o
sangue já não corre. A ansiedade é o mais próximo de viver. E eis que surge um Homem Irracional... De repente, uma luz ao fundo do túnel mostra que é possível
dar um novo significado à vida, evitando um futuro (já não muito longo) de
incertezas que sufocam, alcançando, em vez, uma sólida convicção: fazer um bem
maior, ter uma missão; por um dia, um herói, que desafiou a moralidade social (convence-se), que
é superior à lei, a tudo e todos. Deixar a filosofia, passar da teoria à
prática. Alcançar a satisfação. O crime perfeito foi cumprido (?). E assim,
subitamente, como por milagre, tudo passou a ter sabor. O vento soprar com mais
força, trazendo os perfumes e segredos de como desfrutar a vida. O sexo
tornou-se prazeroso. Voltou o tempo e vontade para desfrutar todos os deleites
da vida. Contudo, quando se abre uma vez um precedente, este dá lugar a mais...
A sorte de uns é o azar de outro. E eis que surge o acaso, esse vilão e, por
vezes, talvez raras, mas existentes, o salvador, como veremos no novo filme de
Woody Allen: «Irrational Man», que mostra-se como uma ode ao maniqueísmo e
debate do livre arbítrio. Da imposição de morais e valores predefinidos por uma
sociedade por si cruel, que cria pessoas instáveis e que não tem em conta as
suas próprias lacunas e diferença entre indivíduos, sendo que para isso recorre
a filósofos como Kant, Simone de Beauvoir e até Sartre, para explicar a relatividade do moralmente certo.
Com fortes influências de «Strangers
on a Train» (1951), «Irrational Man» apresenta-nos a busca de um homem pelo
crime perfeito e superioridade enquanto ser humano. Ao mesmo tempo, também nos relembra «Crimes and Misdemeanors»
e «Match Point» - um dos poucos filmes essencialmente dramáticos da sua autoria,
em que romances proibidos e assassinatos calculados à lupa são alguns dos
elementos que compõe a história. Posto isto, não é, portanto, novidade o
tratamento deste género de assuntos mais negros por parte do realizador judeu, mas
sim a focalização e análise mais profunda nos mesmos, tornando-os o tema central da
história. No entanto, ao contrário das influências acima mencionadas, Allen não
envereda por uma abordagem sombria e séria, aposta antes, numa fórmula
cómico-trágica, em que o crime e mistério mistura-se com o escárnio e cinismo evidentes, como já há
muito nos habituou. Com personagens cartonescas, que representam clichés e personagens-tipo: como
o professor misterioso e depressivo em plena crise existencial, e a jovem
estudante que se enfeitiça pelo ilusão vendida do docente danificado. Tudo
está lá, até o próprio Woody Allen, que espelha em cada uma das personagens um
pouco de si, seja defeitos ou qualidades, seja um pouco do que já viveu ou
fantasiou viver, é visível a marca do autor. A procura pela perfeição e alcance
de unicidade deixa agressivas marcas no espectador, também ele, muito
provavelmente culpado de outros “crimes”. Não é novidade ainda a relação entre
uma personagem masculina mais velha e uma feminina de tenra idade (é exemplo «Whatever Works»), nem tampouco
as três fases da viagem afetiva do protagonista: crise/depressão;
solução/alegria; e consequências/final trágico. A história introduz-nos uma
personagem em plena crise. Melancólica, egoísta e condescendente, que
procura um significado maior para a sua vida, desafiando assim a “normalidade”
que o rodeia e assombra - mais um traço sempre presente nos muitos filmes de
Allen, como por exemplo um dos mais antigos «Annie Hall» ou um dos mais
recentes «Midnight in Paris».
«Irrational Man» faz jus ao
título e mostra-nos o lado mais emotivo e leviano do homem, concentrando numa só personagem o génio e o louco. Em que a busca pelo
prazer e plenitude vence a moralidade, indo ao encontro dos temas comuns
retratados pelo nova-iorquino neurótico. Abe (Joaquin Phoenix), um professor
célebre e admirado pela comunidade docente, que tanto tem de enigmático como
charmoso, estremecendo à sua passagem o sexo feminino do campus, de todas as idades. E Jill (Emma
Watson) é a personificação da inteligência superior feminina sensorial, que
conserva ainda alguma ingenuidade e curiosidade infantil, sendo atraída pelo lado sombrio do protagonista, mesmo sabendo que há algo de errado. Mais uma vez o nome do filme salienta a irracionalidade de uma das personagens, traída pela emoção.
Para além da prestação brilhante
de Joaquin Phoenix na pele de um Allen mais jovem e descontrolado, Emma
Stone ofusca com a sua irreverência e carisma o co-protagonista,
demonstrando que a idade não é impeditiva de uma ótima performance. É de
ressalvar, que com o seu segundo filme ao lado do realizador (o primeiro foi «Magico n Moonlight»), Stone
entra na linhagem das musas residentes de Woody, à semelhança de Mia Farrow,
Diane Keaton e Scarlett Johansson. Parker Posey também integra o elenco, mas
num papel menor, que tem tanto de cómico como de triste, ao mesmo tempo que se perde na história.
Com uma excelente fotografia e banda sonora, este filme é o afastamento derradeiro tanto
esperado do cine-turismo dos últimos anos de filmografia do autor de «Manhattan»,
trazendo-nos de volta à terra do sonho americano, com a inteligência e humor a que estamos habituados. Com o duplo papel de
realizador e argumentista, Woody Allen presenteia-nos com mais uma obra interessante,
mesmo que não exímia por de algum modo remeter vezes a mais a ideias
recauchutadas da sua restante filmografia: o que por um lado pode ser bom, por
outro pode ser enfadonho para os seguidores e conhecedores da obra integral do
realizador-argumentista. Mas isso não tira o mérito e recorde de um filme por
ano, que tão bem nos habituou, todos com a qualidade suficiente para não caírem
na banalidade ou inocuidade do blockbuster comum,fazendo com que cada personagem seja deliciosa, ganhe vida e nos faça pensar.
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