CRÍTICA: The Hateful Eight (2015), de Quentin Tarantino
Não é exagero afirmar que apenas Tarantino poderia fazer isto. Quando me refiro a isto, falo da recuperação de um subgénero que surgiu nos anos 60/70, o spaghetti western, que diz muito pouco ao público (generalista), e torna-lo com o seu toque acessível e divertido numa oportunidade única para injetar implicitamente uma parte da história do cinema na mente dos espectadores.
No seu oitavo filme, o realizador de «Reservori Dogs» apresenta-nos uma nova história, na qual volta a reunir algumas caras conhecidas, recuperando Samuel L. Jackson como um dos pontos fortes do elenco, que brilha e nos relembra porque é um dos nossos atores preferidos. Kurt Russell tem também um papel bastante relevante, sendo mais uma vez o quase carrasco de uma personagem feminina (ainda se lembram de «Death Proof» e da sua personagem?) num papel nada simpático mas bastante divertido de um ponto de vista sádico. Temos ainda um outro renascer, no que diz respeito à carreira, falo de Jennifer Jason Leigh com um papel memorável, entre o repulsivo e cómico, a atriz faz jus aos seus anos de experiência e não deixa ninguém indiferente (a pelo menos querer espetar-lhe um tiro no meio da testa); a nomeação a Melhor Atriz Secundária é merecida. O restante cast também não desilude, atacando-nos com alguma nostalgia quando vemos Michael Madsen («Kill Bill» e «Reservoir Dogs») e Tim Roth («Reservoir Dogs» e «Pulp Fiction»).
A história, pode não ser a mais original e fascinante porém não é por isso que deixa de entreter durante as 3 horas de filme. Mesmo que longo, com alguns momentos já habituais de diálogo pausado e repetições propositadas para quase fazer o público abanar a perna de nervosismo, «The Hateful Eight» tem uma estrutura coesa, com a introdução das personagens no tempo certo, personagens que vão do 8 ao 80 em segundos, com humor, escárnio, ultraviolência, alguns momentos gore, crítica socio-cultural e abordagens de alguns assuntos sérios como questões raciais, guerras civis e relatividade legal.
Durante todo o filme, não temos um herói ou lado bom e mau, temos apenas 8 personagens enclausurados num estabelecimento, dos quais alguns escondem um segredo, esse que naturalmente será descoberto. A receita usada quase semelhante ao início de uma anedota cliché - onde estão tipos muito específicos fechados num bar, o negro, o carrasco, o inglês, o mexicano, o cherife, a fora-da-lei, o coronel - não se revela um floop, surpreendendo com um foco equilibrado em cada personagem, mediante a sua relevância para a história. De algum modo, o que também aprimora a experiência está no facto de o público não criar nenhuma empatia cerrada com as personagens apresentadas, pois todos são vilões à sua maneira, sendo que mais cedo ou mais tarde o demonstram ao público que assiste assim com a devida distância à história. As próprias personagens vão-se introduzindo, explorando o passado uma das outras, até porque algumas já se cruzaram ou têm algum tipo de conexão, o que concede às mesmas mais dimensionalidade psicológica. Cabe ao público imaginar e complementar com base nas pistas que tipo de pessoa é cada uma, com alguns paralelismos com outras do universo do realizador. Sobre isso, podemos perceber alguns easter eggs como o tabaco fictício Red Apple astutamente introduzido e já presente em filmes anteriores de Tarantino, ou menção a outros filmes quase como piada.
A primeira parte do filme pode ser encarada como uma introdução sem nenhuma cena que desperte uma ação, a segunda parte é onde realmente tudo começa a ganhar forma, optando por abandonar a linha narrativa clássica e mexendo com o público através de flashbacks, introduções em off, suspense, já a terceira parte abandona o estilo faroeste, parte para o climax, e lança a corda para se enlaçar noutras obras do realizador, sendo que o nível de violência aleatória e transversal faz lembrar «Death Proof», o exploitation onde também ninguém fica para contar a história...Tudo aquilo que conseguiu concentrar numa cabana, um lugar restrito e pequeno, povoado por personagens peculiares e misteriosas, onde o uso do 70 mm que amplia o ângulo de visão do espectador faz com que se contrarie essa ideia de espaço pequeno fechado, transformando-o num lugar maior, num palco intimista que conta com uma narrativa minimalista mas épica.
Visualmente, Tarantino volta a mostrar cuidado com a estética, falando também muito através dela, com momentos belíssimos que envolvem cenas na neve, o vestuário distinto da personagem de Samuel L. Jackson ou mesmo no interior da cabana nas cenas com mais sangue, tudo tem um sentido e intento para criar significado.
Embora não seja nem tente ser nenhum filme ao nível dos spaghetti de Sergio Leone (como a «Triologia dos Dólares»), é um tributo que tira da arca memórias para aqueles que têm presente o subgénero e que educa aqueles que provavelmente nunca ouviram falar no mesmo, isto tudo ao som do mestre sonoro Ennio Morricone que compôs para «The Hateful Eight» a sua primeira banda sonora em 40 anos de inatividade. O mais interessante, pelo menos para mim, é que Quentin Tarantino mantém algo que muitos realizadores perderam com o tempo a irreverência e capacidade de arriscar, inventando, ignorando regras, manipulando e divertindo, com um prazer que passa ao público, prazer esse que falta no cinema atual cada vez mais pretensioso e bacoco, repleto de experimentalismos inócuos e/ou intelectualismos forçados, que confundem homenagem com plágio, que fecham os olhos ao que realmente interessa: a arte de envolver o público.
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