É engraçado como, por vezes, aqueles filmes que não temos interesse em ver se revelam interessantes e belos. «Trumbo» é um deles. O realizador Jay Roach pega numa história biográfica que poderia ser linear na sua narrativa, mas opta por uma forma mais arrojada de a contar, misturando épocas diferentes da história de Hollywood, e portanto do cinema americano, com dimensões diferentes da própria personagem principal - entre o que ela acha que é/quer ser e acaba por ter consciência de que não pode ser. O filme está longe de ser um drama familiar, é um filme intenso, com complexas críticas e reflexões sobre a forma como a indústria e sociedade age de acordo com a informação veiculada (neste caso ligada a opções partidárias) com organismos superiores ou mesmo os próprios media. Para além disso, escava ainda mais, vai bem fundo, até que chega à própria consciência do protagonista, Trumbo, que ao contrário de muitos personagens não concretiza propriamente os seus ideais primordialmente nobres de procura de liberdade política, mas, antes, mesmo depois de toda a "caminhada", repleta de sacrifícios sobretudo pessoais, percebe que muitas vezes existem aspectos mais valiosos na nossa vida que ignoramos poder vir a perder, bem mais do que valores sociais, sendo neste caso a sua própria felicidade e família. E desta forma a película acaba por partir dos ideais e crenças de um grupo de defensores políticos (comunistas) e indaga nos debates existencialistas da própria personagem Dalton Trumbo, interpretada pelo grande Bryan Cranston (conhecido essencialmente pela série «Breaking Bad», que o lançou tarde na ribalta mas a tempo de mostrar o seu valor) que agarra a personagem com unhas e dentes, que nos faz SENTIR, cada minuto do filme, como se o conhecêssemos e torcêssemos para ser capaz de alcançar a meta merecida...Ao seu lado, temos também os actores que dão corpo à sua família, tirando os dois filhos mais novos, temos a esposa desempenhada pela mais que conhecida Diane Lane que faz jus ao papel abraçado e também a jovem revelação (que tem vindo a trabalhar consecutivamente nos últimos anos desde que se estreou depois da sua irmã) Elle Fanning que mostra que merece o prestígio que tem vindo a seguir o seu nome. Temos também Louis C.K. num papel que lhe assenta bem (mas um pouco próximo do da sua personagem na série homónima) e a magnífica Hellen Mirren que com a idade parece estar cada vez mais ciente das suas capacidades como atriz, que brilha, num papel de "vilã" e nos faz sentir que mesmo assim adoramos vê-la no grande ecrã com tanto vigor e pujança ainda aos 70 anos! De resto, todo o elenco tem uma boa prestação, nota-se que houve um trabalho intenso em conseguir distribuir as atenções do público ao longo dos diversos intervenientes que entram no "comboio figurativo" de Trumbo, ao mesmo tempo que é impossível desviar o olhar de Bryan Cranston!
Para alguém que é apaixonado por cinema, é difícil não gostar deste filme. É um pedaço de história que mistura menções a diversos atores populares (como John Wayne e Kirk Douglas) e conhecidos realizadores (fazendo mesmo menção a Otto Preminger e Stanley Kubrick e ao seu feitio particular), para não falar dos títulos dos filmes que vão sendo revelados e nos deixam um sorriso na cara, quase como uma estampa de felizes-culpados por percebermos a referência aos mesmos. Temos títulos e trechos de uma mão cheia de filmes influentes, como o fabuloso «Roman Holiday», «Spartacus», «The Brave One», «Exodus». e muitos muitos outros, que são indicados como obras escritas por Trumbo usando outros nomes, uma vez que estando na Lista Negra não podia escrever...
A caracterização das personagens ao longo da passagem dos anos é também admirável, se não mesmo exímia! A nível psicológico isso também afecta as mesmas, sendo que nos são apresentadas diferentes fases e formas de agir, tornando as personagens reais e multi-dimensionais; algo que tem faltado muito no cinema americano, seja por preguiça ou incapacidade, mesmo nos nomeados percebemos isso predominantemente formatados pela simplicidade dos blockbusters.
«Trumbo» é um filme intemporal, mesmo que a sua história seja passada nos anos 40, tudo o que vemos é bastante atual e pode ser aplicado a outros episódios de maior escala que assistimos todos os dias em que organizações e personalidades e/ou opinion makers diabolizam determinados grupos e/ou indivíduos menores ou com capacidade de mudança, de forma a controlar, a fazer os seus interesses prevalecer .
Para mim, foi um dos filmes mais emocionantes que assisti que está na Corrida aos Oscares 2016, mesmo que apenas com a nomeação A Melhor Ator. É inacreditável que não figure na lista dos nomeados a Melhor Filme, especialmente quando temos obras regulares ou mal amanhados como «Spotlight» ou «The Big Short», onde a fama parece ser maior que o proveito. É pena que «Tumbo» não tenha tido a atenção merecida, especialmente porque é um filme que fala de cinema, crítica e homenageia, expõe o bom e mau, mas mais que tudo isto conta a história sem filtros de uma época turbulenta em que o argumentista Dalton Trumbo foi importante e decisivo para devolver os dedos às máquinas de escrever de tantos profissionais da área que nos fizeram chegar os grandes filmes que vemos hoje.
A revolução e estratégia é algo realmente digno de um filme e está neste expresso, mostrando que a resiliência por vezes compensa mas também pesa, deixando muita dor e sacrifícios pelo caminho. Tudo isso é-nos mostrado quando na cena final o argumentista finalmente consegue o reconhecimento que tanto queria, mas que para tal muito perdeu não escondendo essa longa jornada e lembrando todos os que estiveram nela.
Com cerca de duas horas, «Trumbo» causa-nos uma amálgama de sensações: entre simpatia, revolta, sorrisos (muitos dado o humor delicioso da personagem) e lágrimas, percebemos que nem tudo é preto ou branco, percebemos que ninguém é totalmente inocente ou culpado e que o mundo real é bem mais complexo do que tudo isso.